sábado, 16 de julho de 2011

Rupert Murdoch...

Um tranco no barão da direita
Por Alberto Dines
Um episódio sem precedentes na história do moderno jornalismo: o fechamento do tablóide marrom News of the World (doravante designado como NOTW) e a prisão de duas figuras-chave, depois soltos sob fiança – sem qualquer passeata ou abaixo-assinado de protesto –, marcam uma espetacular virada nas relações mídia-midiados no mundo ocidental.
O leitor-cidadão, afinal, percebeu o entupimento da rede de esgotos; a sujeira acumulada começou a escapar pelo ralo e macula o processo democrático, o sagrado direito de informar e, de roldão, a última profissão romântica.

Para avaliar as dimensões do acontecido convém anotar o seguinte:
A imprensa não está no banco dos réus. Quem denunciou o escândalo não foi um governo autocrático nem uma polícia bolivariana: foi um jornalão de qualidade,o progressista The Guardian, secundado as ottovoce, meia voz, pelo conservador The Economist.
 Escândalo flagrado e denunciado, ninguém está clamando por mais controles sobre a imprensa. Em uníssono (até agora), todos exigem que a autorregulação saia da esfera do engodo e da fantasia para tornar-se real, efetiva, sobretudo rápida.
 É um equívoco considerar Rupert Murdoch como símile contemporâneo dos magnatas da imprensa do passado: sua linhagem não é a mesma de W. R. Hearst. Está mais para Joseph Goebbels. Murdoch é um caudilho da direita internacional empenhado em destroçar tudo o que o liberalismo político e o welfare state construíram ao longo do último século. O ex-premiê José Maria Aznar não faz parte de um dos Conselhos da News Corp. por seus méritos jornalísticos. Ele está lá por que é um expoente do reacionarismo espanhol até hoje empenhado em santificar Francisco Franco.

Bola de neve

O fechamento do NOTW e seus inevitáveis desdobramentos não podem ser circunscritos às singularidades britânicas, nem sua associação com policiais eram exclusividade dos legionários de Murdoch. O editorial que introduz o especial do Economist sobre imprensa nesta semana deixa claro que outros tablóides usavam os mesmo métodos, talvez menos ostensivamente. Importa saber que Murdoch tem mais força política nos EUA. É o patrono da metade de um gigantesco país entregue a uma histeria conservadora que alimenta continuamente através do vale-tudo noticioso da Fox News (chamado defoxificação pelo Economist) que vence em audiência e faturamento as rivais CNN e MSNBC juntas.
 Na entrevista que concedeu à Folha de S.Paulo na segunda-feira (11/7), o antípoda de Murdoch, o fundador do El País Juan Luís Cebrian, lembrou que “jornais nasceram no começo do século 19... formam parte das instituições do mundo democrático... jornal é uma concepção de mundo. Da primeira à última página...” (ver “Google e Facebook são os concorrentes dos jornais”). Murdoch detesta os jornais-instituições, sua visão de mundo é diametralmente oposta. O jornal-instituição tende naturalmente para um processo decisório colegiado, minimamente consensual. É o que o déspota Murdoch mais detesta.
 Apostou na internet porque representava o fim da imprensa esclarecedora, iluminista. Preocupou-se mais em enfrentar a pirataria do Google (que se servia do conteúdo alheio para ficar com o total das receitas) do que em explorar vantagens digitais como ferramenta ou plataforma.
Há 20 anos que Rupert Murdoch ganha todas as paradas. Em algum momento o processo deveria ser barrado. Ou drasticamente revertido. Tudo indica que o momento chegou. A bola de neve pegou um dos mais perversos criadores de bolas de neve.

AULA DE CIDADANIA...

(clique e amplie)
Cineas Santos
Pediram-me que traçasse um rápido perfil da arqueóloga Niède Guidon. Não precisei pensar muito para fazê-lo: é uma cidadã competente, obstinada e corajosa, cercada de problemas e incompreensões por todos os lados. Venho acompanhando, com o mais vivo interesse, a trajetória da Dra. Niède desde o início da década de 70. Nunca vi ninguém com maior capacidade de entregar-se, de corpo e alma, a uma causa que não é apenas dela; é da humanidade: a defesa incondicional do Parque Nacional da Serra da Capivara. Por ele, Niède morreria se necessário fosse. Aliás, em mais de uma oportunidade já foi ameaçada de morte. Com ardente paciência e com uma coragem que beira à insanidade, a pesquisadora não transige, não faz concessões nem conchavos. Exige que se cumpra a lei, que se respeitem a vida e os registros do que, um dia, foi vivo.
          Os desafios e empecilhos, na vida da pesquisadora, apareceram antes mesmo de ela chegar à Serra da Capivara. No início da década de 60, ao ver algumas fotos das pinturas rupestres da serra, decidiu, por sua conta e risco, percorrer os 3.000 Km que separam São Paulo do Piauí encarapitada num bravo fusquinha. O transbordamento de um rio, na Bahia, impediu-lhe a passagem. Não desistiu do intento e já se preparava para fazer o mesmo percurso, quando ocorreu o golpe de 64. A arqueóloga teve de deixar o país às pressas para não ser presa. Na França, longe das garras dos generais de plantão, manteve aceso o sonho de voltar à Capivara. Em 1973, regressou ao Brasil e, finalmente, pôde defrontar-se com “a mais bela visão” de sua vida: os imensos paredões   da serra, rendilhados de pinturas rupestres, únicas no mundo. Armou sua tenda no meio da caatinga e, ao longo desses 38 anos, só se afastou da Capivara para buscar recursos em Brasília e no exterior. Com o que conseguiu pôde viabilizar novas pesquisas e criar o Museu do Homem Americano.
          É ocioso dizer que sempre conviveu com incompreensões de toda ordem. Se os são-raimundenses encaravam-na com desconfiança, acusando-a inclusive de “furtar peças para vender na França”, seus colegas de ofício não aceitavam sua tese de que, há mais 50 mil anos, humanos já povoavam aquela remota região do planeta. Impávida, lutou pela criação do Parque e vem lutando, obstinadamente, pela conclusão do aeroporto internacional de São Raimundo Nonato, “única forma de tornar o Parque Nacional da Serra da Capivara auto-sustentável”, acredita.
          Na semana passada (30/06), na Academia de Medicina do Piauí, com voz cansada e gestos lentos, Niède Guidon ministrou uma magnífica aula de cidadania para uma plateia atenta e emocionada. Ao terminar, deixou em cada um de nós um sentimento contraditório, misto de alegria e tristeza. Alegria por sabermos que existem pessoas capazes de se doar a uma causa tão nobre; tristeza por não sabermos o que será do Parque quando ela se for.

Niède desembarca no Alto Xingú em 1970. Daí para o Piauí, foi um salto na história.

Niède Guidon (Jaú, São Paulo, 12 de março de 1933) – Arqueóloga brasileira descendente de franceses. Formada em História Natural pela USP, trabalhou no Museu Paulista, quando tomou conhecimento do sítio arqueológico de São Raimundo Nonato no Piauí no Piauí, no ano de 1963.
Especializou-se em arqueologia pré-histórica, pela Sorbonne, e especialização pela Universidade de Paris I.
Desde 1973 integra a Missão Arqueológica Franco-Brasileira, concentrando no Piauí seus trabalhos, que culminaram na criação, ali, do Parque Nacional da Serra da Capivara.


Cineas Santos é professor e editor em Teresina, Piauí.


Caricatura: João de Deus Netto (Jenipaponews)
Foto Niède no Xingú - escavada do livro "O Paraíso é no Piauí", da jornalista .Solange Bastos.
As origens do homem americano de 60 mil anos, nestes links:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...