terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

NISE DA SILVEIRA - 110 anos da psiquiatra rebelde



Filha de Faustino Magalhães da Silveira, professor e jornalista, diretor do Jornal de Alagoas, e de Maria Lydia da Silveira, pianista, Nise teve seu nome escolhido em homenagem à musa do poeta inconfidente Cláudio Manuel da Costa. 
Nascida com temperamento forte, filha única, foi o centro das atenções. Cresceu em meio a uma família com acentuada militância política, num ambiente acolhedor, numa casa sempre aberta aos amigos e convidados, fartamente servidos, onde recebiam os artistas que se apresentavam para a plateia alagoana e os intelectuais que passavam pela cidade. Nise foi cercada de arte e cultura desce cedo.  Ainda criança já escrevia em francês, adolescente lia obras de Spinoza.

Termina o curso secundário em um colégio de freiras, exclusivo para meninas, o Colégio Santíssimo Sacramento, localizado em Maceió. Seu pai, na ocasião, preparava alguns sobrinhos para o vestibular de Medicina em Salvador. Nise se entusiasmou com a idéia e, aos 16 anos, entrou para a Faculdade de Medicina da Bahia, única mulher numa turma de 157 rapazes. Defendeu brilhantemente a tese Ensaios sobre a criminalidade da mulher no Brasil.
Voltou à sua terra, mas com a morte do pai, um mês após a sua formatura, veio para o Rio de Janeiro. Em 1933, passou num concurso federal para o cargo de médica psiquiatra na Assistência a Psicopatas e Profilaxia Mental.
Já casada com seu primo e colega de turma, o sanitarista Mario Magalhães da Silveira, engajou-se nos meios artísticos e literários e frequentava ativamente os círculos marxistas.
Por suas atividades políticas, Nise da Silviera foi presa durante 15 meses no presídio da Frei Caneca, denunciada por uma enfermeira que mostrou à polícia política de Getúlio Vargas, liderada pelo feroz Filinto Müller, os livros “proibidos" que ela guardava na sua estante.  
Partilhou cela com Olga Benário, judia que foi entregue à Gestapo de Hitler pelo governo brasileiro. Nise foi também contemporânea de Graciliano Ramos na prisão, tendo sido personagem do livro e posteriormente filme, Memórias do Cárcere, e da novela Kananga do Japão.
Livre da prisão, viveu clandestinamente até 1944, quando foi anistiada e reintegrada ao serviço público, lotada no Hospital Pedro II, antigo Centro Psiquiátrico Nacional, no Engenho de Dentro, subúrbio do Rio de Janeiro.
Contrária a práticas como eletrochoques, lobotomias e terapia química e medicamentosa, seguiu o caminho da Terapêutica Ocupacional e se propôs a fortalecer esse método transformando-o em um campo de pesquisa. Os valores, como o respeito aos pacientes, o afeto, a liberdade, a criatividade, contrariavam a concepção de um hospital psiquiátrico na época.
Dirigiu por 28 anos o Setor de Terapêutica Ocupacional e Reabilitação (STOR) no Centro Psiquiátrico, onde foram desenvolvidas diversas pesquisas e dezessete núcleos de atividades, entre os quais encadernação, marcenaria, trabalhos manuais, costura, música, dança, teatro, onde ofereciam atividades que estimulassem o fortalecimento do ego dos pacientes, a progressiva ampliação do relacionamento com o meio social, e que servissem como meio de expressão. Nos atendimentos que realizava, Nise procurava criar um clima de liberdade, sem coação, no qual, por meio de diversas atividades, os sintomas pudessem encontrar oportunidade para sua expressão e, como ela dizia, serem despotencializados.
Entre os vários núcleos de atividade, havia o ateliê de pintura, proposto por Almir Mavignier, enfermeiro e artista plástico. O ateliê era monitorado por ele e era frequentado por seus amigos, jovens artistas da época, como Ivan Serpa, Abraham Palatinik e Mario Pedrosa, tornando-se um lugar de referência artística. 
Nise evitava o julgamento estético das pinturas produzidas no ateliê, mas muitas dessas obras foram avaliadas por artistas e consideradas “obras de arte”, vindo a fazer parte de exposições em museus de arte internacionais.
Nise foi surpreendida pela quantidade, qualidade e criatividade dos trabalhos produzidos, num contraste com a atividade reduzida de seus autores fora dos espaços do ateliê. Mais surpreendida ainda ficou com as imagens circulares com configurações perfeitas que apareciam em algumas pinturas. Para entender melhor este fato, ela reuniu estas imagens e as enviou para Carl Gustav Jung. Jung lhe respondeu dizendo que estas imagens eram mandalas e que exprimiam não somente a cisão mas também eram forças autocurativas que procuram reunir as rupturas em formas de contorno harmonioso. A partir deste momento, Nise começou a utilizar a psicologia Junguiana como sua ferramenta de trabalho para o tratamento da esquizofrenia.
Alguns pacientes da Dra. Nise tiveram reconhecimento artístico pelo valor e consistência de suas obras, como Fernando Diniz, Emygdio de Barros, Arthur Amora Raphael, Adelina Gomes. Diversas exposições foram realizadas com as obras destes artistas, inclusive na Bienal de Veneza de 1981.
O ateliê deu origem ao Museu de Imagens do Inconsciente, fundado em 1952, considerado referência no estudo de imagens produzidas por esquizofrênicos. O método de trabalho no Museu consiste principalmente no estudo de séries de imagens que, isoladas, parecem sempre indecifráveis.
Em 1956,  cria a Casa das Palmeiras, em Botafogo, Rio de Janeiro,  uma clínica destinada ao tratamento de egressos de instituições psiquiátricas, onde atividades expressivas são realizadas livremente, em regime de externato.
Em 1957 foi para Zurique estudar no Instituto C.G. Jung, ficando lá por quase um ano.
Nas décadas de 50 e 60, a psiquiatra foi pioneira na pesquisa das relações emocionais entre pacientes e animais, que costumava chamar de coterapeutas. Percebeu esta possibilidade de tratamento ao observar como um paciente a quem delegara os cuidados de uma cadela abandonada no hospital melhorou tendo a responsabilidade de tratar deste animal. Segundo ela, eles “reúnem qualidades que os fazem muito aptos a tornar-se ponto de referência estável no mundo externo”, facilitando a retomada de contato com a realidade. Ela expõe parte deste processo em seu livro Gatos: a emoção de lidar, publicado em 1998.  
 

Em 1968, Nise publicou o livro Jung, vida e obra introduzindo a obra do psiquiatra suíço no Brasil. Ao compreender a importância das imagens mitológicas, do folclore, da religião, ela debruçou-se sobre a cultura nacional e publicou também alguns estudos sobre motivos do nosso folclore
Na década de 1970 Nise teve problemas na visão, situação que lhe causou grande sofrimento, pois isso poderia impedi-la de ler, uma das coisas que ela mais gostava de fazer. Ela precisou realizar uma delicada cirurgia, livrando-se assim do risco da cegueira.
Em 1975, em comemoração ao centenário de Carl Gustav Jung, a Dra. Nise organizou uma grande exposição no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, que viajou por todo o Brasil
Aposentou-se compulsoriamente, aos setenta anos, e organizou e publicou seus livros mais conhecidos: Imagens do inconsciente (1981), que depois se tornaria o filme de mesmo nome de Leon Hirszman, e O mundo das imagens (1992).
Em 1986, morre seu marido. No mesmo ano quebra a perna e passa a andar em cadeira de rodas. Esses acontecimentos não diminuíram sua dedicação ao trabalho, mantendo-se produtiva e lúcida.
Nise rompeu com as tradições e alguns valores da época, ao morar com seu companheiro Mário Magalhães da Silveira, não sendo casados formalmente, como era obrigatório para muitas famílias naquela época.
Combativa e muito além de seu tempo, conferiu um admirável legado de ação e coerência. Tinha personalidade controversa - dócil e feroz. Por isso, o amigo Hélio Pellegrino a denominou Anjo Duro. A lembrança do nome de Nise da Silveira frequentemente vem associada ao pioneirismo na humanização do asilo e nas idéias da reforma psiquiátrica.
Nise da Silveira morreu aos 94 anos, vítima de insuficiência respiratória aguda, depois de ter sido hospitalizada por cerca de um mês com pneumonia.
Em homenagem ao Centenário de Nise da Silveira os Correios lançaram um selo. O selo apresenta, em primeiro plano, o perfil de Nise da Silveira, à direita, e o perfil de um gato, à esquerda, animal admirado pela psiquiatra por sua liberdade, independência e altivez. Em segundo plano, são apresentadas a figura de Nise admirando pinturas criadas por pacientes; uma mandala, símbolo de integração psíquica presente em vários desenhos de seus “clientes”; e um grupo de doentes em convivência. Ao centro, o Manto da Apresentação, criado por Arthur Bispo do Rosário, interno esquizofrênico da Colônia Juliano Moreira. Apesar de não ter sido paciente da Dra. Nise, ao contrário do que muitos consideram, suas obras afirmam a capacidade criadora dos portadores de sofrimento psíquico e, por isso, são comumente associadas às teorias desenvolvidas pela psiquiatra.
O Ministério da Saúde, por meio da Coordenação-Geral de Documentação e Informação e do Centro Cultural da Saúde, em parceria com o Instituto Municipal de Assistência à Saúde Nise da Silveira e Museu de Imagens do Inconsciente, apresentam a Mostra Nise da Silveira - Vida e Obra, uma retrospectiva biográfica da psiquiatra que revolucionou os métodos de atendimento ao portador de transtornos mentais no Brasil. 
Frei Betto escreveu: “A Dra. Nise da Silveira é a mulher do século XX no Brasil, por ter dado uma visão mais humana e inovadora da loucura como expressão da riqueza subjetiva de pessoas que são consideradas deficientes mentais ou portadoras de distúrbios psíquicos. A Dra. Nise nos ensina a descobrir por trás de cada louco, um artista; por trás de cada artista, um ser humano com fome de beleza, sede de transcendência.” 
Fonte: GGN 

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